COVID-19 – Lei 14.010/2020: O que sobrou do regime jurídico emergencial das relações de direito privado na pandemia

Fonte: Roberta Benito Dias, sócia da área de contencioso cível

Publicada na última sexta-feira, dia 12, a Lei 14.010/2020 foi significativamente esvaziada em razão dos vetos do Presidente da República a expressivo número de dispositivos. Tinha por objeto estabelecer normas de caráter emergencial e transitório aplicáveis às relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do Covid-19,

Originada do PL 1179/2020, a Lei 14.010/2020 tem dentre suas premissas básicas (a) a não alteração das leis vigentes, com a criação de regras transitórias e específicas a serem aplicadas no período e em consequência da pandemia e (b) a limitação de seu alcance às matérias preponderantemente privadas.

A ideia de regular através de lei, ou seja, de forma geral e abstrata, determinadas questões jurídicas que presumivelmente surgirão – muitas já surgiram, aliás – no contexto da pandemia atende a múltiplos e legítimos objetivos: nortear e estimular as soluções extrajudiciais das controvérsias, desmotivar a “hiperjudicialização” e, especialmente, reduzir o casuísmo das decisões judiciais, tão nefasto à segurança jurídica e à própria confiança no Poder Judiciário.

A demora na tramitação do processo legislativo aliada à expressiva quantidade de modificações do projeto original (foram 8 dispositivos vetados) acabou, no entanto, amesquinhando a própria utilidade da Lei.

Do que restou do projeto de lei, destaca-se, inicialmente, que o legislador estabeleceu o dia 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6 (que reconheceu o estado de calamidade pública), como o “o termo inicial dos eventos derivados da pandemia”. Esse marco temporal inicial visa evitar que o regime jurídico emergencial seja invocado para regular, de forma oportunista, situações ocorridas antes do contexto da pandemia.

Além disso, a lei estabelece a aplicabilidade de seus preceitos até o dia 30 de outubro de 2020, data adotada pelo legislador como presumível termo final dos efeitos da pandemia.

No campo processual, a lei prevê a suspensão ou impedimento, conforme o caso, dos prazos prescricionais e decadenciais, na presunção de que as restrições impostas pelo período pandêmico dificultaram o acesso à justiça.

A suspensão ou impedimento desses prazos se dá, no entanto, apenas a partir da entrada em vigor da lei, 12 de junho de 2020, até 30 de outubro de 2020, e se aplica a toda e qualquer pretensão, seja ela relacionada ou não aos efeitos da pandemia. Aqui se faz sentir o efeito da demora do processo legislativo, pois, não tendo a lei efeito retroativo, as prescrições e decadências consumadas desde o início da pandemia até a entrada em vigor da lei não serão atingidas.

Pela mesma presunção de dificuldade de acesso à justiça, a lei suspende, também no período de 12 de junho a 30 de outubro, o prazo de aquisição da propriedade imobiliária ou mobiliária por usucapião. Ou seja, em termos práticos, esse período não poderá ser computado pelo possuidor para efeitos de usucapião.

A lei prorroga, ainda, o prazo para a instauração dos processos de inventário e suspende o prazo para sua conclusão, impedindo, com isso, a aplicação das multas previstas nas legislações estaduais pelo atraso no recolhimento do imposto de transmissão causa mortis (ITCMD).

Para as sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, o prazo de 60 dias para a abertura do inventário terá início apenas em 30 de outubro de 2020. Já o prazo de 12 meses para finalização do inventário, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor da lei, 12 de junho de 2020, até 30 de outubro de 2020.

No que respeita às pessoas jurídicas de direito privado e aos condomínios, a lei valida, para todos os efeitos legais, a realização de assembleia geral ou assembleia condominial, conforme o caso, por meio virtual, inclusive para aprovação de contas, destituição ou eleição de administradores ou síndico. No caso dos condomínios, não sendo possível a realização da assembleia virtual para eleição de síndico, os mandatos vencidos a partir de 20 de março de 2020 ficam prorrogados até 30 de outubro de 2020.

No direito de família, a lei estabelece a prisão civil por dívida de alimentos em regime domiciliar. Nas relações de consumo, fica suspensa, até 30 de outubro de 2020, a aplicação do direito de arrependimento (no prazo de 7 dias) nas compras à distância de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.

A lei prevê, ainda, a suspensão temporária da caracterização de determinados atos de concentração ou de infração à ordem econômica, sem prejuízo de análise posterior pelo CADE. Por fim, a lei prorroga para 1º de agosto de 2021 a aplicação das penalidades por descumprimento da lei de proteção de dados (Lei 13.709/2018), cuja vacatio legis, por sua vez, foi estendida até 3 de maio de 2021 pela MP 959/20.

Em razão do veto presidencial, foi suprimido o capítulo IV do PL que continha disposições específicas sobre resilição, resolução e revisão contratual.

Buscando coibir excessos e impedir oportunismos, o projeto previa que as consequências jurídicas da pandemia na execução dos contratos não poderiam ter efeito retroativo, incluindo-se a caracterização de caso fortuito ou força maior previstos no Código Civil.

O projeto também especificava que, para os efeitos de revisão dos contratos pela teoria da imprevisão ou de sua resolução por onerosidade excessiva, não poderiam ser considerados como fatos imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição da moeda.

Muito embora já existam instrumentos legais na legislação vigente para regular situações de desequilíbrio contratual ou mesmo de impossibilidade de cumprimento da obrigação por fatos imprevisíveis e inevitáveis – argumento esse utilizado para a justificativa do veto – o projeto trazia regras pontuais para guiar a interpretação e aplicação desses institutos no contexto da pandemia, em mais uma tentativa de evitar uma explosão de demandas judiciais e de oferecer um norte seguro para a jurisprudência.

Da forma como aprovado o texto final, no entanto, a lei deixou de tratar, como seria salutar, das consequências da pandemia nas relações contratuais, seja nos contratos cíveis e empresariais em geral, seja nos contratos de locação, muitos deles fortemente atingidos pela crise econômica e pela suspensão das atividades em diversos setores empresariais.

Foram vetados também dispositivos que tratavam da vedação de certos despejos liminares, da ampliação e explicitação dos poderes do síndico para restringir atividades em áreas comuns dos condomínios e também privativa das unidades, dentre outros.

Seja como for espera-se que, apesar de suas falhas e omissões, o regime emergencial possa contribuir para evitar que muitas controvérsias acabem, inevitavelmente, desaguando no Poder Judiciário, ou mesmo para que lhes seja aplicada uma solução jurisdicional mais segura, equilibrada e previsível.