As implicações da pandemia da Covid-19 nos contratos de locação

Fonte: Por Maria Beatriz Brochado Costa, advogada da área de contencioso cível

A pandemia da Covid-19, além de trazer indiscutível dano à saúde pública, trouxe mudança relevante ao cenário econômico, causando sua deterioração e impactando de maneira drástica a situação financeira dos brasileiros.

A crise econômica atingiu particularmente as relações locatícias, notadamente as comerciais, visto que, via de regra, são contratos de valor expressivo, de longa duração e de execução continuada, que sofreram substancial alteração do cenário em que foram celebrados. Desde o início da pandemia, diversas normas foram editadas por Estados e Municípios decretando o fechamento de portos, aeroportos e rodovias, escolas, de shoppings centers, centros de compras, galerias, academias de ginástica, clubes sociais, esportivos e similares, buffets infantis, casas de festas, casas noturnas, danceterias, bares e estabelecimentos congêneres, bem como igrejas e templos de qualquer culto e de todas as atividades não essenciais. Diante disso, muitos locatários vêm enfrentando problemas para o cumprimento das contraprestações avençadas, especialmente com o pagamento do aluguel, verificando-se um crescimento vertiginoso do inadimplemento nesses contratos.

A existência de fato superveniente à celebração contrato, imprevisível, fortuito e extraordinário, que modifica a situação inicial e causa onerosidade excessiva à uma das partes e consequente desequilíbrio contratual, indubitavelmente autoriza a revisão de suas cláusulas.

Nesse cenário, caso as partes contratantes não alcancem uma solução consensual para a adequação do contrato de locação a essa nova realidade econômica, como é recomendável e permite o art. 18 da Lei nº 8.245/1991 (Lei de Locação), o Poder Judiciário está autorizado a intervir nessa relação privada para restabelecer o equilíbrio entre as partes contratantes e preservar a manutenção do contrato, ou, então, para resolver (rescindir) o contrato, sob o albergue dos seguintes institutos do direito civil:

a) teoria da imprevisão: artigo 317, CC[1]: diante da extrema dificuldade para o cumprimento do contrato, a teoria da imprevisão permite a revisão do valor das prestações contratuais, mediante a comprovação da presença de alguns requisitos: 1) configuração de evento extraordinário e imprevisível; 2) comprovação da onerosidade excessiva que causa a insuportabilidade do cumprimento do acordo para um dos contratantes; 3) que o contrato seja de execução continuada ou de execução diferida.

b) onerosidade excessiva – artigos 478 e 479, CC[2]: a teoria da onerosidade excessiva superveniente é trazida pelo Código Civil brasileiro dentro das regras de extinção do contrato e por ela permite-se, diante da extrema dificuldade para o cumprimento da prestação pelo devedor, primeiramente a revisão contratual (com a possibilidade de o credor aceitar modificar equitativamente as condições do contrato) e, em caso de impossibilidade, sua consequente rescisão pela via judicial.

c) caso fortuito e força maior – artigo 393, CC[3]: a caracterização do caso fortuito e força maior isenta de responsabilidade o devedor pelo inadimplemento da prestação a que se obrigou. Dois elementos são indispensáveis à sua caracterização: um interno, de ordem objetiva, que é a inevitabilidade, ou seja, a impossibilidade de impedir ou resistir ao acontecimento; outro externo, de ordem subjetiva, que é a ausência de culpa. O locatário não pode ser responsabilizado pela pandemia que atinge o mundo todo e tampouco pode, diante de seu caráter excepcionalíssimo, tê-la evitado, de modo que a pandemia caracteriza o evento de força maior que impõe a solução prevista no ordenamento jurídico.

Considerando que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos privados é situação excepcional e que exige a presença de rígidos requisitos probatórios, a pretensão de revisão judicial das prestações locatícias depende da prova de que a atividade desenvolvida pelo locatário, no imóvel locado, foi direta e fortemente atingida pelos impactos da pandemia da Covid-19, como, por exemplo, uma queda brusca e acentuada do faturamento ou mesmo a impossibilidade da prestação de sua atividade por força de decretos expedidos pelo Poder Público.

Dada a urgência, é possível ajuizar um pedido de tutela antecipada em caráter antecedente, nos termos do art. 303 e seguintes do CPC, ou, então, uma ação revisional com pedido de tutela de urgência (art. 300, CPC).

De se ressaltar que, em todos os casos em que se pretenda a revisão ou suspensão do valor do aluguel, o locatário não pode estar em mora antes da situação da Covid-19, pois o inadimplemento anterior aniquila a tese da teoria da imprevisão ou força maior – que pressupõe o inadimplemento como consequência da situação imprevisível.


[1] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
[2] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
[3] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.