Pressa pode ser inimiga da liberdade em projeto de lei das fake news

Fonte: Por Taís Gasparian, Patricia Blanco e Eugênio Bucci

Proposta em discussão no Senado pode ir à votação ainda nesta semana

 

O projeto de lei que visa combater a desinformação promete voltar à mesa do Senado nos próximos dias (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/relator-de-projeto-de-leipropoe-multa-de-ate-r-10-milhoes-a-candidato-que-disseminar-fake-news.shtml). Por que tanta correria? O projeto, que pretende estabelecer um marco legal para que empresas privadas exerçam o controle do discurso digital dos cidadãos, não deveria ser aprovado a toque de caixa (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/06/responsabilizar-as-redessociais-e-uma-forma-de-evitar-a-disseminacao-de-fake-news-nao.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996).

É imprescindível que o país possa ter tempo de discutir as ideias dos senadores Ângelo Coronel e Alessandro Vieira, respectivamente relator e autor do projeto de lei. Nesse caso, a pressa pode ser inimiga da liberdade.

Na nova versão do projeto, sobressai uma alteração da legislação eleitoral, que ganharia o artigo 53B. Esse artigo pune quem ridicularize candidatos em época de eleições. A proposta guarda um risco medonho para a liberdade de expressão, pois dá margem para que o humor, a sátira ou a paródia sejam penalizados. Um disparate.

Na época de eleições é imprescindível que todo tipo de informação, inclusive a humorística (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/por-charges-criticas-entidade-de-pms-interpela-afolha-e-quatro-cartunistas.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996), circule livremente. Candidatos não são intocáveis. Ao postular cargos públicos, apresentam-se como pessoas públicas e, nessa condição, sujeitam-se a críticas e ironias de variadas colorações(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/plataformas-se-movimentam-paradesidratar-projeto-no-congresso-que-preve-punicao-por-fake-news.shtml).

Mas o dispositivo vai mais longe. No caso de ridicularização (esse termo indefinível e, não obstante, gravemente perigoso para a liberdade de expressão), prevê uma multa de até R$ 10 milhões ao candidato beneficiado (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/relator-de-projeto-de-lei-propoe-multa-de-ate-r-10-milhoes-a-candidatoCelulares usados em empresa para enviar mensagens de WhatsApp em massa – Reprodução que-disseminar-fake-news.shtml) (ou aquele que o juiz vier a entender como sendo “candidato beneficiado”).

Adeus Marcelo Adnet, adeus Porta dos Fundos, Sensacionalista e todas as sátiras que tanto nos divertem. Se este ponto virar lei, nem o clássico Odorico Paraguaçu de “O Bem Amado” sobreviveria.

Não bastasse, no limite o mecanismo draconiano poderá servir de atalho a oportunistas que, pretendendo prejudicar um candidato, consigam acusá-lo de ser o “beneficiado” da “ridicularização” de outro candidato.

Fora isso, permanece no projeto o dispositivo que exige a identificação e um número de celular (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/projetos-no-congresso-queremresponsabilizar-redes-sociais-por-disseminacao-de-fake-news.shtml) para quem queira se cadastrar nas redes sociais. Outra ameaça à liberdade. Como temos alertado em outras oportunidades, foge inteiramente à lógica digital a exigência de apresentação de RG e CPF para quem queira ter voz nas redes sociais.

A ideia não tem sentido, por dois motivos. Em primeiro lugar, a identificação do usuário da internet já é possível.

Para tanto, basta a ordem judicial. Em segundo lugar, o maior trunfo das redes sociais, que é a inclusão digital, será perdido se for exigido, como pretende o projeto de lei, um celular por pessoa para cada um que queira se cadastrar nas redes sociais. Ou seja, limita o acesso e a participação no mundo digital.

O projeto de lei toma o cuidado de citar a liberdade de expressão como um de seus objetivos (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/nao-podemos-jogar-fora-direito-aoanonimato-para-combater-fake-news.shtml?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996), mas, no decorrer do texto, milita contra essa mesma liberdade. O truque retórico tem antecedentes traumáticos.

No tempo da ditadura militar, a lei de imprensa, promulgada em 1967 por uma junta militar, também dispunha no seu artigo 1º a defesa da liberdade de expressão. Nos outros artigos, criminalizava atividades da imprensa.

Finalmente, não é admissível que se imponha às empresas de internet um sem-número de ônus que acabarão por fazer delas um braço do Estado no monitoramento dos cidadãos. Deixar o controle do discurso na mão de empresas privadas pode degradar numa terceirização privatizada da censura. Nessa matéria, a afobação vai matar as boas intenções.

Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/pressa-pode-ser-inimiga-da-liberdade-em-projeto-de-lei-das-fake-news.shtml