Responsabilidade Civil dos Provedores de Internet

Fonte: Tais Gasparian

A questão relativa à responsabilidade dos provedores de internet, no Brasil, foi de certo modo pacificada desde junho de 2014, quando entrou em vigor a lei nº 12.965, que estabeleceu princípios, garantias e direitos para o uso da Internet no país. Por sua relevância, foi denominada Marco Civil da Internet, e tem por objetivo a fixação dos direitos e das responsabilidades relativas à utilização dos meios digitais. Basicamente, caracteriza-se por ser uma legislação que garante direitos, e não que restringe liberdades.

A ausência de uma legislação regulatória da Internet gerava incerteza jurídica quanto ao resultado de questões judiciais relacionadas ao tema. Assuntos muito importantes para a o uso da internet no país, como a neutralidade da rede, foram regulados por essa lei. Com relação à responsabilidade dos provedores (intermediary liability), o principal aspecto a ser destacado é a disposição de que os provedores não são responsáveis por conteúdo de terceiros, a não ser que não obedeçam a ordem judiciais de remoção de conteúdo.

Durante muito tempo se discutiu, no Brasil, se conteúdos poderiam ser retirados da Internet sem autorização judicial, ou seja, mediante uma mera notificação. Alguns Juízes entendiam que muitas vezes havia indícios suficientes de que o conteúdo era ofensivo e que, nesse caso, se o provedor não retirasse o conteúdo depois de notificado extrajudicialmente, poderia ser condenado ao pagamento de indenização. O Marco Civil da Internet colocou um fim nessa discussão, de sorte que, atualmente, o provedor de serviços (ISP) somente é obrigado a remover um conteúdo mediante autorização judicial. Evidente que na hipótese de questões evidentemente ilícitas, como imagens de abuso sexual infantil, o provedor deve agir tão logo tenha conhecimento do fato.

Esse foi um importante avanço legislativo que também tem reflexo no que diz respeito à liberdade de expressão. De fato, seria potencialmente perigoso que qualquer notificação pudesse gerar a obrigação de retirada de conteúdo. A atribuição de uma tal responsabilidade ao provedor poderia gerar situações de censura, de vez que a avaliação de interesses subjetivos, como ofensa ou dano moral, é muito complexa e exige a análise do contexto da publicação, o que nem sempre é possível de modo objetivo. Por outro lado, nem seria justo que se atribuísse ao provedor a difícil tarefa de decidir o que pode ou não continuar a ser veiculado na rede.

A Lei 12.965/14 firmou o entendimento de que vigora, relativamente a responsabilização do provedor por conteúdo ilícito, a regra da responsabilidade civil subjetiva, com a exigência de ordem judicial específica para que os provedores tornem indisponíveis conteúdos gerados por terceiros e violadores de direitos. Mas a própria Lei criou algumas exceções como, por exemplo, a do artigo 21, aplicável às hipóteses de conteúdos envolvendo “nudez ou de atos sexuais de caráter privado”. Nesses casos, “após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal”, o provedor deve indisponibilizar o conteúdo, de “forma diligente”, no âmbito e nos limites técnicos de seu serviço, sob pena de responder subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização, do conteúdo infrator.

O que ainda não está regulamentado é o que se entende por “forma diligente”. Muitos juristas e usuários da Internet defendem o estabelecimento de um prazo para tanto. A jurisprudência do STJ já estabeleceu a razoabilidade do prazo 24h para a retirada de conteúdos ilícitos em aplicações de Internet: “Uma vez notificado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, o provedor deve retirar o material do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada”1.

Outra questão diz respeito ao modo como deve ser feita a indicação do conteúdo que deve ser retirado (art. 19) Internet ou indisponibilizado (art. 21). Ha uma corrente doutrinária e jurisprudencial que estabelece que a indicação do conteúdo a ser retirado ou indisponibilizado deve ser feita por meio da URL (uniform resource locator). A indicação da URL seria suficiente para a localização objetiva e inequívoca do conteúdo. Também há, nesse sentido, jurisprudência do STJ2. Esse tipo de identificação evita que o provedor de aplicações seja obrigado por ordem judicial a estabelecer qualquer tipo de filtro ou monitoramento de conteúdo por sua conta e risco, sem que este conteúdo tenha sido especificamente analisado e especificado pelo Judiciário.

Importante ressaltar que o Marco Civil expressamente excepcionou sua aplicação a questões relativas a violações a direitos autorais praticada por terceiros.

O Marco Civil da Internet ajudará a estabelecer uma uniformização da jurisprudência no Brasil, no que diz respeito a responsabilidade dos provedores, pois a lei os exime de qualquer responsabilidade por conteúdo postado por terceiros, o que fortalece a Liberdade de expressão. The statute has set the tone fostering freedom of speech on the internet, and this needs to be strengthened. Moreover, it is important to note that it was precisely the topic of freedom of speech that stirred debates during the course of the bill in Congress.

O desafio, agora, é o modo que a lei será regulamentada, uma vez que sua eficácia depende, em certa medida, dessa regulamentação3. Alguns magistrados, principalmente do Judiciário paulista, entendem que, até ser regulamentada, estão suspensos os direitos e as obrigações criadas pela lei.

Ainda não chegaram às Cortes Superiores do país processos relativos a fatos ocorridos depois da promulgação da Lei. Mas há dois casos que valem ser ressaltados, mesmo que digam respeito a fatos ocorridos antes da Lei.
Um deles é uma decisão do STJ que merece atenção por dizer respeito a direitos autorais. A empresa Botelho Indústria e Distribuição Cinematográfica moveu processo contra o Google em razão de um vídeo seu, relativo a um curso jurídico, ter sido postado com fins comerciais por um usuário da rede social Orkut em 2008. Depois de ter notificado extrajudicialmente o Google, a empresa ajuizou ação requerendo a retirada de todas as mensagens e vídeos relacionados às aulas, aos cursos ou a qualquer outro material de sua propriedade. No processo, a empresa identificou alguns endereços das páginas nas quais os atos ilícitos teriam sido sendo praticados.

O processo foi relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, que na decisão fez um estudo comparado do caso com a jurisprudência estrangeira, especialmente com os casos Universal Studios v. Sony; Napster v. A&M Records Inc.; MGM v. Grokster e o caso do Pirate Bay. O Ministro Relator também estudou a estrutura da rede social em questão e o comportamento do Google, e concluiu que não contribuíram para a violação dos direitos autorais. A decisão apoiou-se em três pontos: (a) a rede social não fornecia instrumento tecnológico de compartilhamento de arquivos, nem favorecia downloads de obras protegidas por copyright; (b) a rede social não obteve lucro com as violações perpetradas pelos usuários em razão da negativa do Orkut de monitorar essa utilização e, finalmente, (c) não houve danos materiais à empresa que pudessem ser atribuídos ao provedor de internet.

O Orkut foi, contudo, condenado a apresentar a identificação eletrônica dos usuários que praticaram os atos ilícitos, ou seja, os IP’s desses usuários, e a remover as páginas que foram suficientemente identificadas pelas URL’s. O Google também foi condenado ao pagamento de multa pelo atraso no cumprimento da decisão no que respeita à remoção das páginas violadoras e à identificação eletrônica dos usuários.

Um outro caso vale ser ressaltado por ser realmente peculiar. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, Corte responsável pela uniformização da interpretação da legislação federal, proferiu decisão4 completamente contrária aos dispositivos do Marco Civil, e diversa da de outras que o mesmo Tribunal já havia proferido. A justificativa dada pelo Relator do processo, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ao assim decidir, foi a de que os fatos relativos ao processo ocorreram antes da promulgação dessa Lei5. Nessa decisão, o STJ decidiu que o provedor de serviços, plataforma digital de um jornal, era responsável por comentários que seus leitores haviam postado sobre uma reportagem. O jornal foi condenado ao pagamento de indenização ao autor da ação, por “conduta omissiva”, em razão de não ter feito a moderação/controle dos comentários postados pelos internautas.

O caso é curioso e merece uma análise mais detida, porque os fatos que deram origem ao processo referem-se a um ex-desembargador do estado de Alagoas, chamado Orlando Manso. Em 2008, quando ainda estava no exercício de suas funções, o desembargador proferiu uma ordem de habeas corpus para suspender um interrogatório em um processo penal no qual um deputado estadual, do mesmo estado de Alagoas, era acusado da autoria intelectual de um homicídio. O jornal Tudo na Hora publicou, em sua edição digital, uma matéria a respeito da ordem concedida pelo então desembargador. No espaço reservado aos comentários dos internautas, foram postadas mensagens que o desembargador julgou lhe ofenderem. O autor entendeu que a matéria jornalística havia sido propositadamente elaborada de maneira incompleta, com o deliberado objetivo de provocar as manifestações agressivas dos internautas. Por esse motivo, processou o jornal. Esses são os fatos que estão na origem dessa decisão do STJ.
Obviamente que não se pode dizer que o STJ proferiu essa decisão porque o autor da ação era um ex desembargador. Apesar da cultura corporativa do Judiciário brasileiro, há diversas decisões judiciais que mostram a independência dos magistrados. Mas a hipótese se faz presente quando os fatos são expostos, sobretudo em razão da evidente contrariedade a outras decisões.
É curioso como o Brasil pode produzir uma legislação tão avançada e reconhecida no mundo todo relativamente à Internet, como o Marco Civil, e de outro lado também proferir julgamentos inusitados e até retrógrados.

Além do exemplo acima, relativamente ao caso em que o autor da ação era um magistrado, lembro de outro, também de 2015, em que o Tribunal do Estado do Acre, estado brasileiro que fica no meio da selva amazônica, determinou que todos os blogueiros da capital do estado, a cidade de Rio Branco, registrassem os seus blogs em um Cartório de Registros Públicos. A ordem foi motivada por um pedido fundamentado em uma lei de 1973, da época da ditadura, que obrigava os jornais e as revistas a obter registro antes de circularem. De acordo com o pedido, todos os blogs da cidade deveriam se registrar, por se equipararem a veículos de comunicação. Para além do fato de que já o requisito geográfico antecipava a dificuldade de aplicação e o absurdo da decisão, a decisão ainda dispunha que os blogs que assim não agissem, seriam considerados “clandestinos”.

Evidentemente que a decisão abriu uma enorme discussão no país, sobretudo nos veículos de mídia, o que levou o autor da ação a desistir do pedido. O caso chega a ser pitoresco, e demonstra a discrepância de pontos de vista, de conhecimento e de interpretação de normas e do manejo dos conceitos relacionados à Internet. Tudo isso, é óbvio, é um reflexo da imensidão do território brasileiro, com diferenças sociais e econômicas gigantescas.